As cotas sociais e o senso comum
qua, 15/07/2015 - 18:16
Qual deveria ser a diferença
entre um jornal e um comentário de rede social? A profundidade da
análise, é evidente. Supõe-se que, com mais capacidade financeira do que
meros comentaristas de redes ou blogs, os jornais desenvolveriam
capacidade maior de análise, sobrepondo-se ao festival de lugares comuns
que invade as redes sociais.
Mas não é assim.
Desde que surgiu a Internet e os âncoras
de TV e rádio ganharam expressão, a maneira dos jornais se
diferenciarem foram... imitando-os. As matérias passaram a ser bem
curtas e o chamado colunismo fast-food a emular o senso comum. E tudo
isso sem os recursos dos links e dos ALT TABS.
É o caso da coluna de hoje na página 2 da Folha sobre as cotas na USP.
Hoje em dia há
um mundo de literatura sobre o tema. A começar dos estudos da Unicamp
mostrando que o aluno de escola pública que entra na Universidade já
passou por uma seleção natural no seu meio. Chega com um nível um pouco
abaixo dos colegas de escolas privadas. Mas em pouco tempo supera a
diferença, porque a Universidade não é apenas um meio de obtenção de
diploma, mas a saída para superar a miséria ancestral da sua família.
Entendido isso, vamos à jóia do pensamento kameliano (de Ali Kamel, da Globo) inserida na página 2 da Folha.
"A primeira é qual a forma
mais eficiente de uma universidade pública promover justiça. A questão
não é retórica, principalmente no caso da USP, sustentada por um dos
impostos mais regressivos do país, o ICMS.
Se na origem da iniquidade
está a falta de desenvolvimento econômico e institucional –e não a
seleção universitária–, a melhor forma de construir bem-estar talvez
seja amplificar a produção de tecnologia, inovação, processos, reflexão,
política pública e profissionais de qualidade".
Trocar o balde sob a goteira deixa o chão seco, mas o furo permanece".
Sofisma 1 -
se é o imposto mais regressivo, significa que é preponderantemente
bancado pelos mais pobres. Portanto não procede o argumento de que, ao
ampliar as cotas para os mais pobres, a USP esteja afrontando os
princípios de equidade fiscal.
Sofisma 2 -
Cria um falso dilema entre aumentar as cotas ou amplificar a produção de
tecnologia, inovação etc. As duas iniciativas são excludentes apenas
para reforçar o argumento da colunista. Provavelmente se os cursos de
jornalismo fossem mais exigentes, o raciocínio dos formandos não seria
tão simplificadamente binário.
"Outra incógnita é se é
justo, de fato, o novo modelo de seleção. Sabemos quem vai perder sua
vaga para negros, índios e estudantes de escola pública? E se forem
desbotados pobres cuja família se sacrificou anos para pagar uma escola
particular?"
Sofisma 3 - É
fantástico! Segundo a lógica, estudam nas escolas públicas apenas os
desbotados pobres cujas famílias não se sacrificaram para pagar escola
particular. A atual geração de jornalistas formou-se passando pela USP
antes do advento das cotas. Será que sua formação amplificou "a produção
de tecnologia, inovação, processos, reflexão, política pública e
profissionais de qualidade"? Será que sofisticou sua capacidade de
análise? Será que conseguiram entender o mundo de forma mais complexa, a
ponto de conseguir avançar além do raciocínio binário?
"Premiar a origem sobre o desempenho, ainda que de forma parcial, desvaloriza o empenho. Está claro o impacto dessa mensagem?"
Sofisma 4 -
está claro o impacto da mensagem: completa ignorância sobre os
componentes da desigualdade. Qualquer pensador consistente - seja
liberal, populista, marxista - sabe que a base da desigualdade está no
acesso às oportunidades do ensino. Eles podem discordar em vários pontos
(imposto sobre heranças, tributação do capital, políticas de
transferência de renda) mas são unânimes em considerar a igualdade de
oportunidades na educação como pilar de uma sociedade menos desigual.
Além da obviedade de que o aluno de escola pública que conseguiu chegar à
Universidade - ainda que à custa de cotas - disputou a vaga com
milhares de outros alunos e passou, graças ao seu empenho. Está clara a
mensagem?
"Mais um ponto: se a
universidade hoje já não é capaz de facilitar o progresso dos menos
ricos com cursos noturnos, moradia, livros e refeições suficientes, como
vai apoiar e fortalecer os novos ingressantes?"
Sofisma 5 -
através de artigos mais elaborados e críticos analisando a razão desse
apoio não funcionar e exigindo melhorias no atendimento. É assim que as
políticas são aprimoradas. Veja o caso da inclusão de crianças com
deficiência na rede pública. Pensadores binários diziam: se a escola
pública não consegue atender os sem deficiência, como atenderá os com
deficiência? Aí veio o Ministério Público Federal e passou a exigir que
as escolas se preparassem. Hoje em dia existem 800 mil crianças com
deficiência sendo atendidas. Se a lógica binária prevalecesse, estariam
ao léu.
"Por fim –já que, entre
tantas reformas importantes, resolveu-se mexer na seleção–: manter
critérios do século 19 (que nem sempre avaliam o raciocínio, mas a
memória) é a forma correta de atrair os alunos com maior potencial de
melhorar o país?"
Sofisma 6 -
Mas uma vez o pensamento binário, "ou", "ou", para uma lógica que
evidentemente, obviamente, é "e" "e". Não há nenhuma relação de
causalidade entre o modelo de prova e as cotas. É um argumento tão
irrelevante quanto dizer que "se o prédio da reitoria está mal cuidado,
não pode haver cotas sociais".
"Não há dúvida de que a
USP tem boas intenções. Mas o inferno, dizem, está cheio delas –e o uso
populista e inadequado de recursos escassos é uma das vias mais rápidas
até lá".
Sofisma 7 -
Os recursos aplicados serão os mesmos, apenas alguns alunos serão
diferentes. Os melhores alunos cotistas, os que mais se esforçaram, os
mais promissores, tirarão as vagas dos piores alunos não cotistas, e se
juntarão aos melhores alunos não cotistas. Tenho certeza de que um aluno
de favela, se cursasse a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP,
na qual me formei, traria uma experiência de vida que lhe permitiria
desenvolver raciocínios muito mais consistentes do que alunos que
entraram sem se esforçar, formaram-se sem fazer força, e escrevem sem
pensar. De más intenções reforçadas por pensamentos binários, o
jornalismo está cheio.
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